Como se combate a ideologia pela via ideológica

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Após ter tratado de algumas pistas que sugerem o caráter das políticas propostas pelo novo governo, posso com mais propriedade discutir o que pensa e como pretende agir o comandante da educação nacional. Afora as polêmicas, como na indicação de secretários para o segundo escalão, semana passada para se fazer entender melhor o Ministro da Educação veio inaugurar um canal oficial: “Bate-papo com o professor Vélez”.

Descartando-se o fato de que essa estratégia de comunicação busca aproximar as ações governamentais da população em geral, criando um espaço de “bate-papo” descontraído e informal, proponho uma análise mais profunda dos argumentos colocados em pauta. No vídeo de abertura, o ministro poderia abrir o espaço de diálogo direcionando a crítica e os esforços para os problemas educacionais tão conhecidos desde o tempo dos pioneiros. Afinal, a oportunidade foi ocupada com mais uma “caça às bruxas”.

O que chamou mais atenção da mídia em geral, foi a exaltação de dois conceitos que terão “muita ênfase” nas novas ações do MEC: a Educação Moral e Cívica e o Projeto Rondon. Deliberadamente ou sem querer (pouco importa), o ministro nos levou diretamente ao tempo da ditadura militar. Por exemplo, o Projeto Rondon, criado por decreto em 1968 e subordinado ao Ministério do Interior, foi amplamente utilizado pelos militares como forma de integração e desenvolvimento regionais. Extinto após a promulgação da nova Constituição o projeto volta a ser retomado em 2003, mas agora como pauta do movimento estudantil. Hoje, parece que o governo pensa em utilizar o programa como forma de completar a “formação cidadã” dos universitários.

Cabe já aqui um destaque, se atentarmos bem para a fala do ministro no vídeo vamos encontrar a correspondência direta entre os termos “cidadania” e “civismo”, como se fossem sinônimos. Pelo que vejo, é estratégia clássica de regimes de exceção, nos quais fica autorizada apenas uma forma de cidadania: a cidadania moldada e embalada pelo governo de ufanismo.

Com o Projeto Rondon, de caráter interministerial, o MEC pega carona numa estratégia de desenvolvimento econômico e social historicamente consolidada. Em todo caso, os objetivos da educação só podem ser alcançados por meio de uma política educacional “ao pé da letra” – e é aí que entra a Educação Moral e Cívica. Tratada pelo ministro em sua fala como uma mera disciplina que ensinaria “a base do comportamento para vida a comunitária” parece que a matéria reduzir-se-ia a um novo conteúdo, que se ensinaria facilmente por meio de novos manuais e apostilas. Essa simplificação de uma proposta abrangente como essa é prova de que a educação pensada pelo ministro é apenas um espantalho, comparada ao que o ensino baseado em evidências provou ao longo das últimas décadas.

Para se ter uma ideia da desconsideração com os esforços do passado, é amplamente catalogado – tanto no estudo sobre os livros didáticos de Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política Brasileira, quanto nos registros de práticas escolares dos anos 1971 e 1980 – o viés ideológico contido nessas matérias. Ao invés de consolidar um sentimento pátrio e estimular o intercâmbio cultural da nação essas disciplinas serviram apenas como forma de minimizar críticas e exagerar as “conquistas” do regime ditatorial. Vale lembrar que eu fui estudante do antigo “primeiro grau”, exatamente nessa época, e guardo vivas lembranças dessa “doutrinação” pela qual passei.

Com a redemocratização o conteúdo é extinto sob a forma de disciplina, mas não foi negligenciado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais, já que preconizam que princípios de civismo e patriotismo sejam ministrados como temas transversais para “a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática”. Curioso notar como a reforma do Ensino Médio (também pela vida da BNCC) tenta extinguir disciplinas (como História e Geografia) promovendo a integração em torno de áreas (como a de Ciências Humanas), mas na mesma toada o atual governo busca ressuscitar disciplinas anacrônicas e “ideológicas”. Com certeza, efetividade pedagógica e necessidade social não são as demandas a serem supridas.

Para que fique claro o teor da minha crítica, o decreto que institui a matéria EMC nos primeiros anos da ditadura determinou que fosse ministrada “como disciplina e, também, como prática educativa”. Tratava-se de um decreto dos Ministros da Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, que tinha como principais objetivos os de, “sob inspiração de Deus”: projetar valores espirituais e éticos, promover o “culto” à pátria, a obediência às leis e garantir o “aprimoramento” do caráter dos indivíduos. Os detalhes técnicos da implementação ficariam a cargo da Comissão Nacional de Moral e Civismo, obviamente subordinada ao Ministro de Estado. E assim, ficou desenhada a política que pretendia fortalecer a “cidadania” no povo por meio de uma execução pedagógica tutelada pelo governo. Nada menos indicado para a promoção da “consciência cívica” do que uma educação “chapa branca”.

Em suma, tanto a “libertinagem” quanto o “canibalismo” são características falsas atribuídas ao brasileiro. São expressões caricaturais de comportamentos individuais que nada tem a ver com os reais problemas da educação brasileira. Para usar as palavras de Priscila Cruz, valorizar Direitos Humanos é visto como promoção do “coitadismo” enquanto defender a doutrinação moral é exemplo para busca de boas práticas em educação. Para mim, como em todo o resto desse governo, as declarações do Ministro da Educação apenas demonstram de maneira clara como se combate a ideologia pela via ideológica – um verdadeiro tutorial de como transformar moinhos de vento (bruxas) em gigantes (problemas educacionais).

Um comentário em “Como se combate a ideologia pela via ideológica

  1. “Nós estamos agora vivendo uma coisa duríssima, o fim das utopias, que gera uma coisa muito estranha. Porque a utopia cria o homem superior, a utopia faz você subir acima de você mesmo, e agora estamos numa era de homens inferiores.”
    (Antonio Cândido, 1993, em vídeo.).

    Era 1993!

    Que tempos são esses em que estamos vivos? Toda vez que vejo uma bandeira do Brasil pendurada em um carro ou exposta na janela de uma casa, fico pensando se o dono é patriota ou fascista.
    Eu cantava o hino nacional toda sexta-feira na escola, até os 14 anos, no SESI, e estávamos em 1994. Moral e cívica, AES, continência, proibições, um “regime militar”, como imaginar que aquilo tudo era só isso?! Todos os colegas de escola da época com quem mantive contato até pouco tempo, são hoje os tais bolsominions. Ainda bem que sempre gostei de questionar, ainda bem que sempre levei jeito pra ser “ovelha negra”…

    Parabéns, Érico. Seus textos são fantásticos! Beijo.

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