A bacia, a água suja e a criança

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O presidente nessa semana fez mais um pronunciamento falando de educação. O que ele falou ajuda a entender mais sobre: preconceito, método científico e evidências. O duro é que só nos deparamos com tudo isso quando refutamos seus argumentos fajutos.

Em “live” veiculada na última quinta-feira, o presidente parecia mesmo um fanfarrão. Fez questão de dirigir sua metralhadora de chavões para os efeitos do Bolsa Família sobre a educação brasileira, mais disposto a “causar” do que a propor um diálogo responsável . Citou uma referência como fazem os alunos do ensino fundamental – um “levantamento” lá – e apontou “dados” que demonstram o “fracasso” dessa política pública. Caso o governo tivesse novos dados sobre o programa seria de extrema importância, já que tudo que ajuda é bem vindo. Ocorre que era um blefe, e a realidade insiste em bater à porta todo dia.

Focando então nos dois argumentos preferidos do presidente – o da “herança” maldita e o da “meritocracia” –, vou fazer comentários aqui que tentam expor as inverdades e oferecer antídotos contra venenos dessa natureza. O primeiro deles diz respeito a um suposto “desenvolvimento intelectual dessa garotada [… equivalente] a 1/3 da média mundial”. “Essa garotada” é identificada no video como crianças de 0 a 3 anos provenientes de famílias que recebem o Bolsa Família.

Por se tratar de uma discussão que tem por base critérios e resultados científicos, vamos tentar extrair o método e a conclusão “válida”. A premissa do presidente é clara: “São os problemas, as heranças que temos por aí e temos que começar a mudar”. Mas a frente na fala o presidente reforça a ideia: “temos que incutir na cabeça da garotada. A verdade, o amor à Pátria. Dizer que ele só vai ser feliz lá na frente na parte econômica se ralar, se estudar agora. Não fica esperando do Estado”. Daí só temos uma forma de chegar à conclusão do presidente, imaginar que crianças de 0 a 3 anos são “criadas” para viverem esperando benesses do Estado, se acomodando e “pesando” para quem é produtivo na economia. É muito surrealismo para uma cabeça só!

Em primeiro lugar, discussões sobre o chamado “dinheiro grátis” existem há décadas em diversos países no mundo – desde os mais estatizados, até aos mais liberais. Além de muito discutido, é estratégia também já aplicada na economia de países desenvolvidos. Agora, com alguns resultados mais consolidados, é fundamental que se volte olhar para os limites e potencialidades dessas políticas. Os resultados mais recentes, monitorados pela Finlândia, dão conta de que embora não tenha impactado como queriam no mercado de trabalho (provocando a diminuição de empregos precários, forçando as empresas a buscarem formas de valorizar o trabalhador), pelo menos o programa têm aumentado a felicidade e a confiança da população nas iniciativas do governo. Olhando para o caso brasileiro, não podemos deixar de ver que uma volta da confiança nas instituições cairia muito bem. Só para completar, não existe nenhum dado que comprove que renda cidadã provoca perda de produtividade da economia como um todo.

Sobre o segundo argumento, o da “meritocracia”, precisamos tentar aproximar mais do tal “levantamento” que dá sustentação à fala. O presidente deu referência, dizendo que o “estudo” é de responsabilidade do Ministério da Cidadania. Diante de mais uma (óbvia) polêmica deflagrada, o ministro vem se defender. Em nota oficial diz que está mesmo realizando estudo em cerca de 30 municípios. Ocorre que o trabalho só fica pronto em 2022 e tem por objetivo mapear o impacto do programa Criança Feliz, e não o do Bolsa Família. Esse erro metodológico é razão suficiente para que a fala do presidente não seja aprovada nem em pré-qualificação de TCC na graduação.

Mais do que isso, durante a construção da “linha de base” (espécie de recorte teórico) os pesquisadores identificaram que crianças atendidas pelo Bolsa Família (3000 crianças pelos dados da nota) apresentam algum déficit cognitivo – “aproximadamente 35% em comparação com outras crianças da mesma faixa etária que não se encontram em situação de vulnerabilidade social”. A pesquisa não permite dizer que “filhos do Bolsa Família” têm 1/3 do desenvolvimento médio das crianças em todo mundo. O recorte é claro em mostrar que a diferença aparece porque esta é uma população com vulnerabilidade social. Se compararmos o desenvolvimento de bebês em comunidades precárias e em bairros luxuosos vamos encontrar os mesmos dados. Ou seja, o Bolsa Família não é a causa do déficit (como tenta fazer crer o presidente), mas sim a vulnerabilidade social. Para ser verdade o que o presidente fala, seria como se medindo temperatura de uma criança com tosse e coriza julgássemos que a febre em que ela se encontra é a causa da gripe.

Em resumo, falas de políticos nunca são muito presas a realidades concretas e a conquistas da ciência – mas pra tudo tem um limite nessa vida. Encontrar um dado que mostra déficits cognitivos em uma população, nunca poderia autorizar um presidente a estimular preconceito contra uma política pública de tanto sucesso. Seja na perspectiva econômica, seja na perspectiva social, as conquistas do programa são retumbantes. Só para ressaltarmos um conjunto de conquistas, que contradizem frontalmente as ideias do presidente, lembramos que em 2014 já tínhamos a notícia (segundo IPEA, IBGE e INEP) de que “[os filhos do Bolsa Família] estão mais escolarizados, são mais cuidados pelo sistema de saúde, têm menos irmãos e estão até mesmo ficando mais altos do que os pais”. Não recusamos estudos e aperfeiçoamentos no programa, mas é nosso dever cuidar para que a água suja seja jogada fora e a criança continue devidamente cuidada e protegida.

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