A cesta básica e o alicerce ou: porque não se deve confiar na alfabetização proposta por um estrangeiro

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Mais uma vez, o assunto da semana é o “ministro professor”. Em audiência na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados ele deixou claro todo o seu despreparo e expôs escancaradamente a tragédia que vive sua pasta. Foi colocado “nas cordas” por mais de um deputado, tudo porque não consegue descrever em detalhes sequer um projeto. Como foi falado também pelos deputados, não se espera uma transformação em tão pouco tempo de governo, mas espera-se pelo menos que tenha diagnósticos e cronograma – não apenas “lista de desejos”. E olha que só existe uma meta no plano para os “100 primeiros dias”: alfabetização.

Vou aqui me concentrar no que disse o ministro a respeito das “primeiras letras”, já que não precisa de mais nada para se entender o naufrágio do MEC. A divulgação oficial da visita do ministro mostra que ele foi solícito e apresentou todas as propostas com tranquilidade. Entretanto, a respeito de alfabetização, a própria reportagem oficial revela a ingenuidade e o improviso que são marcas registradas. De cara apresentou como ênfase da gestão a “inversão” da pirâmide de investimento do governo federal, transferindo aos poucos a maior parte dos recursos do ensino superior para a educação básica.

Trocando em miúdos, parece haver um consenso dentro do MEC de que os recursos da Educação devem financiar prioritariamente a educação básica por ser esta a “cesta básica” do sistema educacional todo. Ora, sem falar no fato de que a metáfora mais apropriada seria a do alicerce (base sólida sobre a qual se assenta uma construção), o ministro não tem controle sobre os significados que quer transmitir – pelo menos não em língua portuguesa. Falando de cesta básica o governante deixa a impressão de que o que ele quer oferecer é um mínimo essencial e não um suporte sólido e seguro para o resto do percurso formativo das crianças. Por isso não se pode confiar num projeto de quem parece ter pouca familiaridade com o objeto de que trata.

Em seguida, pode-se comentar também o maior feito que o ministro julga ter realizado a frente do MEC: a criação da Secretaria de Alfabetização. Sem falar que a secretaria não consegue demonstrar uma única medida que vem tomando, traz muito medo o que uma equipe montada por esse ministro professor pode propor e executar. Para se ter uma ideia, numa tentativa de trazer alguma cientificidade para o seu discurso, o gestor cita uma cronologia de trabalhos que norteariam o ensino na educação infantil hoje em dia. Faz referência a um documento de 2003 produzido pela Câmara e a outro de 2011 editado por uma associação científica. Supostamente, todos os últimos estudos comprovariam que a alfabetização no Brasil, no século 21, não respeita as descobertas e evidências científicas construídas ao longo do século 20.

Vou comentar apenas o documento de 2011, para expor como um diagnóstico bem feito também pode matar o doente – administrando o remédio errado. O texto aponta aspectos neurológicos, psicológicos e econômicos, para defender uma alfabetização que segue método baseado em evidências. Mas quais são as evidências? Para começar, em um texto de 266 páginas, menos de 50 delas descreve métodos de alfabetização na história. Pelo recorte escolhido, os estudos sobre alfabetização têm início dos anos 1950 nos EUA. Não preciso dizer que é questionável o recorte, tendo em vista que estudos mais antigos (relacionados à aprendizagem em geral ou à cognição em específico) dão sustentação científica para discutir métodos de alfabetização. Mas para meu espanto, o que o documento tenta fazer crer é que o método mais avançado segundo as evidências é o “método fônico” – daí a prescrever um ensino com base na “Caminho Suave” é apenas um passo.

Inacreditável que para discutir métodos de alfabetização não haja sequer uma referência em todo o texto sobre os trabalhos de Emilia Ferreiro, nem para refutar nem para citar seu empreendimento científico no século 20. Isso é mais do que suficiente para reconhecer qual a linha de raciocínio desse povo. Por um lado, o desenvolvimento econômico (leia-se, o investimento dos empresários) depende de recursos humanos para movimentar as máquinas e os processos – realizando o lucro. Cada vez mais essas rotinas têm relação com manipulação de um conjunto cada vez mais extenso de práticas de leitura e cálculo.

Tudo isso deve ser garantido o mais rápido possível ao cidadão, inclusive com a prescrição de que o ensino superior não é para todo mundo. E aí que entra o remédio administrado: a recomendação do método fônico. Alega-se inclusive que esse é o método mais adotado em países como a Finlândia, e que por isso os resultados educacionais vêm tão rápido nesses países. Nada é mais falso do que essa afirmação, já que a educação finlandesa é exemplo mais nítido de que o foco no aluno, a participação da comunidade e a valorização da carreira são as raízes de todo o sucesso – exatamente o que demonstrou os trabalhos de Ferreiro.

Resumindo, o documento que foi citado como referência importante pelo ministro faz vistas grossas sobre os avanços do ensino não-fônico e defende uma ideologia de que o ensino excessivamente técnico (tecnicista) é o mais indicado. O diagnóstico de que os resultados da alfabetização no Brasil são trágicos é correto, porém o remédio tem grandes chances de matar o doente por impedir que se construa um processo de aquisição da linguagem escrita de forma crítica e emancipada.

É certo que o processo ensino-aprendizagem na educação infantil e nas primeiras séries do ensino fundamental precisa ser revisto, pois os índices demonstram defasagens muito perigosas. Porém essas críticas têm sido feitas pelas vias corretas, levando em conta as teorias, a apreensão delas e as ações dentro de sala. Sem negligenciar nenhum tipo de avanço científico, especialmente sem colocar a ideologia acima das evidências, existem muitos trabalhos que demonstram como a transformação de sistemas educativos em países de baixo rendimento só aconteceu com investimento maciço de recursos materiais e com significação social que valorize a profissão docente. Nada parece mais longe de acontecer no Brasil, já que esse governo continua dando sinais de que vai continuar privilegiando o financeiro em detrimento do social.

Um comentário em “A cesta básica e o alicerce ou: porque não se deve confiar na alfabetização proposta por um estrangeiro

  1. Dessa vez é um agradecimento especial, particular. Além de trazer evidências sobre a importância do conteúdo, os vários links vão me ajudar à mapear o que está acontecendo e eu não sabia como começar. Parabéns pela maestria com que produz os conteúdos.

    “O diagnóstico de que os resultados da alfabetização no Brasil são trágicos é correto, porém o remédio tem grandes chances de matar o doente por impedir que se construa um processo de aquisição da linguagem escrita de forma crítica e emancipada.”

    Como não chorar com essa realidade?!

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