Disputando corações e enfrentando moinhos

caCando_moinhos

A Educação é a bola, no jogo ideológico que o governo federal disputa com as narrativas ditas “esquerdistas”. Para ilustrar a dimensão que a matéria tem, no centro dos ideais da “nova era”, me debrucei sobre umas das primeiras medidas adotadas pelo presidente assim que o ano começou: o Decreto nº 9.665/19. Inocentemente, o decreto apenas nomearia e distribuiria os cargos de confiança no Ministério da Educação, mas faz muito mais do que isso. Destaco agora apenas uma das controvérsias que ele desencadeia: a militarização de instituições da educação pública no nível básico.

Pra ficar apenas no conteúdo do documento, o art. 2º (inciso II, alínea “a”, item “5”) cria na Secretaria da Educação Básica (SEB) a Subsecretaria de “fomento às Escolas Cívico-Militares”. Já o art. 11 (inciso XVI) registra como competência da SEB a de promover a adesão das instituições estaduais e municipais que pretendem assumir a “gestão administrativa, educacional e didático-pedagógica adotada por colégios militares”. No art. 16, ficam apresentadas (em 13 incisos) as competências da nova subsecretaria.

Interessante notar que esse não parecia ser um dos focos da gestão que se inicia, embora sejam facilmente compreendidos os objetivos por trás. Como atribuição essencial da subsecretaria, logo no primeiro inciso do art. 16, vem o de desenvolver “programas nos campos didático-pedagógicos e de gestão educacional que considerem valores cívicos, de cidadania” que são imprescindíveis aos jovens. A meu ver, aqui temos dois problemas muito sérios: quem constatou que esses “valores” não estão sendo promovidos entre os jovens por meio da escola pública e com base em que metodologia uma subsecretaria de governo consegue determinar quais são os programas mais apropriados para desenvolver tais “valores”? Ou seja, na raiz de toda da inconsistência do decreto está a ausência completa de diálogo.

Prova disso é que a repercussão foi imediata e no dia seguinte o MEC já estava soltando nota para colocar panos quentes. O duro é que, nesse governo, a emenda costuma ficar pior que o soneto. De cara, a principal preocupação do ministério seria com os “altos índices de criminalidade” (!!!), que teriam solução por meio de uma alternativa para a “formação cultural das novas gerações”. Essa “alternativa” tem por princípios o “civismo”, a “hierarquia” (!!!) e o “respeito mútuo”, garantidos pela “presença de militares na gestão administrativa” (!!!). O outro argumento presente na nota apresenta supostamente um caráter didático pedagógico para a iniciativa contida no decreto: “as escolas militares apresentam elevados índices nas avaliações realizadas pelo MEC”.

Temos então um raciocínio destrinchado e com ele podemos oferecer uma dupla crítica. Em primeiro lugar, como bem lembrado em outro blog, o ECA determina como direito dos “jovens” (crianças e adolescentes na letra da lei) o respeito à livre expressão, à identidade e aos valores que quiser adotar. Como integrar esse direito ao art. 14 do regimento de um tradicional colégio militar de Minas Gerais, no qual o uniforme serve para manter a hierarquia (!!!) e transmitir “subjetivamente, um ideal de igualdade entre todos os alunos”? Esses princípios não são os democráticos do Estado de direito inaugurado em 1988, são ideais integralistas.

Em segundo lugar, sobre a suposta excelência do ensino oferecido nos colégios militares, a controvérsia chegou ao ensino superior. A maior universidade estadual do país neste ano se opôs, num primeiro momento, à matrícula por cotas de alunos que vieram do ensino básico militar. A preocupação inicial era a de que alunos de colégios particulares estariam se beneficiando indevidamente da ação afirmativa reservada para estudantes de escola pública. Ainda que tenha sofrido a influência de ingerências externas e da jurisprudência do STF – que aliás, nas palavras de Lewandowski, confirma que os colégios militares “não se encontram inseridos no sistema da rede pública de ensino” – a USP retirou-se do debate sem o esgotar o julgamento do mérito.

O que mais importa é reconhecer que os alunos de “colégios militares” não são estudantes da rede pública regular de ensino, vinculadas às secretarias estaduais e municipais de ensino. Dois critérios básicos definem a sua situação: são geridas pelas forças armadas (ou pelas polícias) e cobram mensalidades. Esses dois elementos produzem dois efeitos pedagógicos que quebram a isonomia em relação aos outros estudantes da escola pública: seletividade e homogeneidade.

Como fica claro, no edital de ingresso (2019) da já referida instituição militar, o público desses colégios é “prioritariamente” os dependentes de servidores das instituições mantenedoras. Além disso, sua proposta pedagógica está baseada numa única concepção de escola, criança e ensino – da mesma forma que as instituições confessionais. Essas características as afastam definitivamente do conjunto das “escolas públicas”, onde universalidade e heterogeneidade compõem o material humano e cultural com os quis a escola tem que lidar para garantir o mínimo de aprendizado a todos os cidadãos do país.

Assim, viciado em palavras de ordem e chavões ufanistas, o discurso oficial provoca verdadeiras aberrações, como a desta segunda-feira. Dessa forma bêbada, negligenciando os verdadeiros problemas educacionais, caçando moinhos e substituindo o “marxismo cultural” pela abominável formatação integralista, segue nosso ministro professor propagando ideologia onde deveria imperar a ciência e os direitos sociais. E ainda tem leigo que chama de “canalhice ideológica” o que tentou fazer a USP.

6 comentários em “Disputando corações e enfrentando moinhos

  1. Mais um texto esclarecedor, brilhante nas entrelinhas. Esse “governo” é !escalafobético! sic e está pegando a base, realmente gravíssimo. O ufanismo sempre foi sinal máximo de alerta quando algo está apodrecendo! Ufanismo com hino?! Ufanismo com religião?! Tive a impressão de que o laicismo será criminalizado constitucionalmente e não vai demorar muito.
    Além do absurdo em si nesse e-mail, os erros que preocupam logo de cara (talvez existissem em outro formato, não escancarado ou se tornando “constitucional, normal”…
    – fere o princípio da impessoalidade ao citar slogan de campanha.

    – o ECA proíbe a filmagem desautorizada de crianças.

    – o MEC não tem competência sobre escolas estaduais e municipais.

    – fere a laicidade do ensino e fere a liberdade de cátedra.

    Quem está nos governando? Estamos lutando contra quem? Não existe ideia mais partidária do que o “Escola sem partido”, que não foi “aprovado” mas já até foi ou será constitucionalizado? Entendo que institucionalizado já foi em 2016.

    Não consigo definir isso, não encontro respostas. Lendo o texto, imediatamente veio à cabeça a famosa passagem de Walter Benjamin:

    “Nunca houve um monumento da cultura que não fosse um monumento da barbárie. E, assim, como a cultura não é isenta de barbárie, não é tampouco o processo de transmissão da cultura. O assombro com o fato de que os episódios que vivemos no século XX ainda sejam possíveis não é um assombro filosófico. Assombroso é acreditar que existe progresso na história.”

    Também tenho pensado sobre o laicismo, nunca seremos um país tolerante com ateus e agnósticos, basta lembrar da carta CF de 1988:
    “promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”. Então Clero e Estado nunca irão se separar e é expressamente proibido ser antirreligioso no Brasil

    Os grandes só parecem grandes porque estamos ajoelhados

    1. Compartilho de suas legítimas preocupações, Lígia. Vejo que os negócios têm valido muito mais do que a vida humana, e também vejo que a sociedade brasileira atualmente vive inebriada pelo discurso fácil da “recuperação econômica”. Quanto ao Estado laico, vejo com muito temor a onda conservadora que chega, mas ainda acredito que não existe mal que sempre dure. Lutemos!

  2. “Os grandes só parecem grandes porque estamos ajoelhados”. (Che). Enviei a citação sem aspas, estou corrigindo.

    Parabéns pelo texto brilhante. Instiga a pensar além do que estamos assistindo. Literalmente, estamos assistindo.

    Beijo grande.

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